Entre camadas e conexões: os voos sonoros da Colibri em sua trilogia

2:08 PM

Foto: Pedro Ommã

Com sonoridade plural e criação intuitiva, banda baiana revisita sua trajetória cinco anos após o primeiro álbum e mergulha em nova fase com o lançamento de 3R [pt. II], turnê, documentário e mais experimentações sonoras

Texto: Ingrid Natalie (instagram: @femalerocksquad)

Com uma sonoridade que transita entre o rock, o jazz e a música afro-baiana, a Colibri tem se destacado na cena independente por sua abordagem experimental e sensível à criação musical. Formada na Bahia, a banda aposta em um processo criativo colaborativo e intuitivo, o que resulta em composições marcadas pela diversidade de influências e pelo cuidado com os detalhes.

Cinco anos após o lançamento do álbum "Canto de Colibri", o grupo vive um novo momento com a chegada de "3R [pt. II]", segundo capítulo de uma trilogia iniciada durante o isolamento social em Cachoeira do Itanhy. A nova fase marca mudanças na formação, experimentações sonoras e uma agenda promissora que inclui turnê, live session e um documentário em produção.

Nesta entrevista, José Neto, vocalista e principal compositor da Colibri, fala sobre identidade musical, bastidores da nova fase, desafios da cena independente e os caminhos que que a banda vem construindo com originalidade e consistência ao longo dos últimos anos.

FRS: A Colibri tem uma sonoridade muito particular, mesclando rock, jazz e música afro-baiana. Como vocês definiriam a identidade musical da banda?

José Neto: Eu diria que somos um grupo muito intuitivo. O rumo que a música toma tem muito a ver com o que cada um tem se afeiçoado musicalmente naquele período. Não debatemos conscientemente para onde a música da Colibri vai na maioria das vezes. Nós nutrimos uma relação de intimidade e amizade que permite uma conexão pessoal, uma familiaridade com o gosto musical de cada um. Eu acabo trazendo a maior parte das composições, e por isso procuro munir a banda de referências que eu mesmo tenho ouvido bastante, para que a minha ideia faça mais sentido quando for passada. Além disso, tem a afinidade que ganhamos com os anos, o que certamente facilita a nossa comunicação não verbal nas horas de criar. Quando falamos em timbre, acho que pelo fato de todos da banda produzirem de casa e compartilharem demos, plugins, pedais de efeito e microfones, o resultado tem se tornado mais refinado e autêntico. Essa identidade que temos hoje foi resultado de muitas muito mais de uma carga afetiva que de uma escolha estética. 

FRS: O álbum 'Canto de Colibri' completou cinco anos recentemente. Como vocês veem a evolução da banda desde esse lançamento?

José Neto: O 'Canto de Colibri' segue sendo uma coleção de músicas muito querida por todos na banda. Essa época traz à memória uma fase de descobrimento, onde estávamos acertando o lugar das coisas na banda. Foi curioso que essa fase acabou sendo curta, em virtude da pandemia e toda a loucura que ela trouxe 6 meses depois que o disco foi lançado. Uma pena que não fizemos mais shows no período, temos até umas gravações ao vivo desse disco pra soltar. Em virtude disso, fazemos questão de colocar as músicas desse álbum em repertórios atuais para seguir essa narrativa que vem lá de quando tudo começou e valorizar essa história. Rolou um show comemorativo no ano passado bem intimista, que certamente tocou o coração de todos com muita nostalgia. Foi como um retorno para a canção doce e sútil do 'Canto de Colibri', depois de um mergulho no som mais elétrico e denso do '3R'. 

FRS: Quais foram os maiores desafios e aprendizados ao longo da trajetória da Colibri?

José Neto: A música independente é uma eterna aposta, a gente coloca tudo que temos na cesta e corre pro abraço. Nem sempre isso recebe uma resposta da forma que a gente imagina, então existem alguns percalços nesse sentido. O maior aprendizado é o de manter-se fiel a si mesmo nas criações, equacionar os desejos e visões criativas de todos os membros do grupo e também se organizar financeiramente para investir no projeto. Há um hábito de não se pagar pra ouvir a música, ir aos shows, ou adquirir o merchandising de artistas menos conhecidos. E isso torna mais desafiador manter uma banda ativa, pois a música é um negócio meio caro atualmente (quando pensamos em sonorização, horas de estúdio, manutenção de equipamentos). Está mais acessível produzir, mas rodar com um projeto e ter uma frequência de shows mais persistente tornou-se complexo após a pandemia, com o impacto do fechamento de estúdios, casas de show e etc. Isso deixou um desfalque que tem sido sentido, e apenas alguns grupos têm tido sucesso em rodar pelo país de maneira independente. Exige uma rede de apoio e conexões que toma bastante tempo.

FRS: Como funciona o processo de criação das músicas? Vocês costumam partir de uma ideia individual ou tudo acontece de forma coletiva?

José Neto: A música é um estado de sonho para nós. No Brasil, a arte tem raízes profundas em manifestações espirituais. E certamente poderíamos dizer que abordar a música como uma forma de nos conectarmos com nossos “eus superiores” é muito central em nossa música. Nós nos reunimos para tocar, cantar e nos apresentar para conectarmos uns com os outros e explorar nossas ideias de forma muito democrática e experimental. Trabalhar em equipe para criar uma obra de arte é um processo muito íntimo, e compartilhamos isso com muito espaço para individualidade. Muitas vezes, as ideias surgem em ocasiões comuns e se desenvolvem em um mantra que eventualmente se torna uma música. Outras vezes, a ideia ocupa tanto espaço e dimensão que nenhuma atividade poderia impedi-la de ganhar vida, e nós simplesmente traduzimos isso. Também temos músicas que surgem durante os ensaios como jam sessions, como "The Roadhouse, pt. I e II". Após as experimentações, visualizamos a composição, a gravação e o arranjo de uma forma mais objetiva. A maioria das músicas e letras são escritas por Zé Neto (vocalista/guitarrista), então o arranjo é construído coletivamente ao lado da banda: Oliveira dos Santos (sintetizador/guitarra), Paulo Pitta (saxofone) e Tiago Andrade (baixo/mixagem e masterização).

Na arena do gênero, ouvimos e tocamos muito Rock Psicodélico, Alternativo, Dream Pop/Shoegaze, Post Punk e Jazz. Mas é tudo sobre criar o clima e o cenário para a história que nossas letras estão contando... gostamos de manter nossos ouvidos abertos para qualquer coisa que os agrade sem apegos a rótulos ou a origem das referências. Pra nós música é uma manifestação global.

FRS: O novo álbum '3R [pt. II]' marca um momento de transição intensa para a banda, tanto musicalmente quanto na formação. Como foi esse processo de adaptação e o impacto disso na sonoridade do álbum?

José Neto: Esse disco foi marcado por um momento muito experimental, onde a banda foi mudando, e com isso novos detalhes foram surgindo em camadas. Algumas canções estavam prontas há muito tempo e tiveram várias versões, o que favoreceu enxergarmos elas de maneira mais profissional e crítica. Além disso, não tínhamos medo de tentar, sabe? O que ficou nas músicas foi resultado de olhares satisfeitos e sorrisos fraternais que solidificaram essas escolhas. Já as mudanças que ocorreram na formação, foram todas pacíficas e dentro da noção de que caminhos criativos podem se cruzar e descruzar com o tempo, e que despedidas também fazem parte da jornada. 

No quesito lírico, buscamos sacudir um pouco. Trouxemos amigos pra mudar o tom da história com suas narrativas lindas e isso fez o álbum saltar mais aos olhos. Os desafios maiores eram o tempo e os deslocamentos: alguns membros estavam finalizando seus cursos de graduação, outros moravam em outras cidades e levavam 1h ou mais para chegar ao estúdio. Mas nada que atrapalhasse de fluir. A maioria foi gravada no ano passado, entre o Estúdio Mangus (na Ribeira) e o Cremenow (em Brotas). Além disso, a parte 2 tem 2 músicas criadas e gravadas em Cachoeira: “the Roadhouse pt. II” e “Out of Grrrasp” (apesar das respectivas participações terem gravado suas vozes após nosso retorno do isolamento). 

FRS: O projeto começou como um refúgio criativo durante o isolamento em Cachoeira do Itanhy. Como esse período influenciou a identidade da trilogia?

José Neto: O período de isolamento colaborou para que temas intensos e catárticos refletissem os desafios do momento. Sonoramente, toques de progressivo, pós-punk e dream-pop abriram espaço para movimentos que vão desde a nostálgica psicodelia dos anos 70 até o romantismo gótico e irreverência fantasiosa de bandas como Joy Division e Cocteau Twins. Nas letras, os conflitos internos e as transformações pessoais dos integrantes, durante os últimos quatro anos, são colocadas em evidência. Em meio a desafios como luto, distanciamento e dissolução do ego, o registro se posiciona como um rito de passagem. 

Estávamos rodeados de más notícias o tempo todo e sem tocar há tempos, em virtude da pandemia. Não poder sair de casa ou sequer vislumbrar quando poderíamos retornar aos ensaios e palcos foi um baque. Quando decidimos ir pra Cachoeira, foi uma espécie de retiro. Definitivamente um ato em prol de não deixar aquilo engolir a gente. 

Uma vez lá, tudo isso era contrastado por um entorno muito harmônico e positivo -  já que a casa onde estávamos era afastada da área residencial, onde podíamos tocar a qualquer hora do dia sem incomodar ninguém e ainda respirar um ar fresco.

FRS: O que diferencia 3R [pt. II] de 3R [pt. I] em termos de conceito e atmosfera sonora?

José Neto: Esse segundo capítulo tem uma atmosfera de rebeldia e inconformismo, com novos elementos e participações especiais que deram um tempero especial. Tem mais libido, ainda que numa alma melancólica. Houve um intenso esforço de exacerbar as nuances dos sentimentos com uma produção afiada, de extrapolar a ideia prévia que tínhamos da nossa musicalidade. O primeiro é um pouco mais romântico, nostálgico e reflexivo. Ate pela natureza das composições. Usando o tarot como referência: a parte I seria como a carta “o Louco” e o 2 como “a Lua”. 

FRS: O novo álbum amplia as experimentações da banda, trazendo elementos do pós-punk, dream-pop e música eletrônica. Como essas influências entraram no som da Colibri?

José Neto: Essas relações acontecem de forma muito rápida, e raramente calculada. Durante os ensaios e encontros da banda, vamos testando o que funciona e colhendo do repertório que cada um tem as ideias possíveis. Na gênese das músicas, há sempre um sentimento que predomina e ele se associa com um instrumento ou gênero musical quase que por tradução. Tem um valor inefável aí, onde não dá pra apontar bem porquê cada coisa se relaciona (pra nós há uma beleza nisso). Dessa forma, pela variedade de vivências e referências de cada membro da banda, essas misturas brotam de forma natural. Compartilhamos muita música entre nós, e já temos uma afinidade com o caminho criativo um do outro que nutre um calor familiar no modo de tocar que compartilhamos. Não conversamos tanto sobre o que esperamos das partes um do outro, só deixamos fluir até chegar num ponto onde todos conseguem se enxergar nas músicas. 

FRS: O saxofone de Paulo Pitta trouxe novas possibilidades à banda. Como foi integrar esse instrumento à identidade sonora da Colibri?

José Neto: Foi prazeroso este encontro. Para além do saxofone ser um dos principais instrumentos do jazz, a forma como Pitta o aborda, conseguindo colocar muito da sua trajetória musical nas composições e interpretações, inspirou e acendeu novas chamas criativas em todos nós. Sonoridades concebidas a partir de materiais melódicos, rítmicos, técnicas não tão usuais no saxofone e a mistura disso tudo com os pedais de efeito que ele vem utilizando ao longo da sua carreira, incendiaram Cuban Coffee e transformando a faixa num jazz-rock-progressivo-experimental, por assim dizer! 

FRS: Na música “The Roadhouse, pt. II”, vocês exploram o diálogo entre rap e rock com as participações de Galf AC, Dubzoro e Alfão. Como surgiu essa ideia e como foi o processo de colaboração?

José Neto: Ficou incrível e certamente mais coisas virão dessa parceria. Galf A.C. é um rapper de ouvido muito apurado e refinado… um veterano do Cremenow (estúdio do nosso produtor e baixista Tiago Simões). Nos aproximamos aos poucos entre uma gravação e outra, íamos trocando figurinhas e sempre tínhamos referências em comum. Foi de Galf a ideia de trazer rimas pra “the Roadhouse, Pt. II”. Logo depois, por conhecer e admirar bastante o trabalho deles na Underismo, conectei com Dubzoro e Alfão - uma dupla de artistas incríveis e de uma versatilidade única - pra completar a track. Isso aconteceu através de Gabriela Bonfim, uma amiga minha que frequentava os shows e conhecia membros do grupo. 

Essa música surgiu de uma jam session gravada lá em setembro de 2021, quando estávamos em Cachoeira. Ela é a segunda parte de uma jam de 36 minutos, que surgiu numa das últimas noites de nossa estadia na cidade. Sua sonoridade resulta dessa inquietação criativa em meio a um tempo tão incerto. Misturamos ruídos noturnos e melodias trazendo uma atmosfera misteriosa, cheia de pequenos detalhes e deleites. Como assistimos Twin Peaks de David Lynch quase toda noite durante esse tempo, demos a ela o nome de The Roadhouse em referência à uma das locações que mais tem destaque na série. Toda a sonoridade da música bebeu dessa estética sombria e errante. Em relação às participações, suas rimas somaram de forma particularmente precisa ao clima da música, dando forma e contexto para a camada sonora. Ovnis, ciclos, vícios e as incertezas que nos cercam ficaram à mostra

FRS: Com o lançamento de 3R [pt. II], vocês já estão organizando uma turnê e até um documentário. O que os fãs podem esperar dessa nova fase da Colibri nos palcos e nas telas?

José Neto: O documentário vem sendo produzido desde 2022, e contém imagens de shows, backstages e algumas entrevistas. A ideia é fazer um apanhado de todo o período do 3R, e apresentar um pouco da banda de forma mais pessoal. Estamos agora na fase da edição, e não deve demorar em sair. É resultado da parceria com Francisco Lima, nosso amigo e videomaker que acompanha tudo que fazemos na Colibri. 

Já a live pretendemos fazer algo que transpareça a experiência ao vivo da banda, mas que seja diferente de um show gravado. Uma coisa mais imersiva e visual, mas que entregue essa performance dinâmica e acalorada de uma banda. Esse projeto vem em parceria com uma dupla que admiramos muito e já trabalhou conosco antes no clipe de Quintal: Alan dos Anjos e Bel Abreu.

Sobre a turnê: ainda estamos acertando umas datas e organizando com os produtores locais e a agenda dos membros da banda. De cara posso falar que ela vai começar em Maio de 2025 com um show na Sala do Coro do TCA. Após isso, gostaríamos de rodar pelo nordeste, quem sabe outras regiões do país, e estamos de portas abertas para convites. Deixo aqui para eventuais contratantes o nosso e-mail, contatodecolibri@gmail.com que será um prazer ter a chance de tocar em cidades pelo Brasil. 

FRS: A última parte da trilogia está prevista para 2025. Já podem adiantar algo sobre o que vem por aí?

José Neto: Esse capítulo final vai trazer mais instrumentos (como piano e bandolim), uma abordagem que resultou dessas duas edições anteriores foi trazermos instrumentos novos pro hall da banda como uma forma de destacar cada etapa do 3R entre si. Além disso, teremos o fechamento da trilogia Roadhouse. O capítulo final dessa era do 3R não será um fim, mas uma janela para o continuum. Esse vai ser mais como o presságio do que vem aí do que apenas um repeat do que já vimos anteriormente em tom de despedida.

Ouça "3R" na íntegra:

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